Coração mole, palavras duras. São 40 anos vivendo e aprendendo no dia-a-dia da construção
“Você tem até o direito de não gostar de você, mas respeite o direito de quem gosta: Sua esposa, seus filhos, a sua família, os seus companheiros…”
Deve ser duro ouvir uma verdade como esta. Mas, para proteger os seus próprios colegas, o encarregado Francisco Gomes Sobrinho, 60 anos, nunca pensou duas vezes para dispará-la nos ouvidos dos que mereceram ouvi-la.
E lá se vão 40 anos de trabalho incessante, de segunda a segunda, nos canteiros de obras da vida. Mestre Chicão é querido pelos seus comandados e dorme com a consciência tranquila, como um líder nato, e um ser humano que preza pela vida de seus companheiros.
“Um dia, perguntei a um colaborador por que ele não estava usando o cinto de segurança? Ele respondeu: ‘Porque o cinto me atrapalha’. Pedi que o rapaz interrompesse a tarefa para colocar o cinto e o talabarte. Ele insistiu: ‘Já disse ao senhor que o cinto me atrapalha’. Chicão respirou fundo, mantendo a tranquilidade. E arrematou a conversa: Pois, então, vou dizer a você o que me dói na alma: É bater na porta da casa de um trabalhador de minha equipe para informar à esposa dele. Aconteceu um acidente com o … e ele…”
Chicão pode ser um doce de pessoa, mas sabe quando deve jogar duro para ser ouvido. Todos o respeitam. E o admiram.
Com a cara e a coragem
Nasceu em Mucambo, no Ceará, cidade que pertence à Região Metropolitana de Sobral, a 286 km da Capital, Fortaleza. Chegou no Rio de Janeiro quando completou 18 anos. Graças a ajuda de um amigo, conseguiu vaga da construção civil. Foi contratado como servente e teve que usar o primeiro pagamento para comprar suas ferramentas. Seu maior progresso foi na Cofix, onde evoluiu de carpinteiro a mestre de obras, um dos capitães do time do Dr. Paulo Vieira, então diretor de Obras da empresa de formas. Hoje, trabalham juntos, novamente, agora na Machado Vieira Engenharia.
Chicão é casado há 30 anos, tem duas filhas e mora no Irajá.
Quando fizemos esta entrevista, era responsável por um grupo de 12 colabores que atuavam na reconstrução do Hotel Everest, na Rua Prudente de Morais, em Ipanema – empreendimento da SIG Engenharia. “Mas já comandei uma equipe de 130 colabores, com sete encarregados, numa outra obra, em Camboinhas, Niterói.
Um olho no padre e outro na missa
“Não importa a quantidade de comandados. O responsável deve estar atento a todos, sejam 12 ou 130” – afirma, com a experiência de quem aprendeu todos os segredos da profissão no dia-a-dia do canteiro, chova ou faça sol.
“É muito importante saber se aproximar de todos. Às vezes, o sujeito chega de mau-humor e responde com agressividade, por mais insignificante seja o assunto. Não dou sequência. Deixo-o trabalhar e pensar por que procedeu daquela forma. Volto mais tarde e puxo conversa, novamente. Encontro uma outra pessoa, um homem mais sensato e educado. Certamente, o companheiro parou para pensar e concluiu que estava errado. Não há motivo para estremecimentos.”
A pressa é inimiga da perfeição
O encarregado é um inimigo da pressa inconsequente. Geralmente, resulta em serviço malfeito, que deve ser desmanchado e realizado, novamente. O prejuízo é coletivo: para ele, a equipe, a empresa e o cliente final.
É também um pregador incansável da necessidade do uso correto do EPI (Equipamento de Proteção Individual). “Não basta usá-los, é preciso usá-los de forma acertada, como manda o figurino” – garante, apontado para um rapaz que cruza o refeitório. Mostra que o colaborador está usando o capacete, os óculos de proteção, protetores auditivos, luvas e botas, de acordo com as normas técnicas. E revela:
“Outro dia, levou um tombo feio. Perdeu o equilíbrio e caiu do terceiro andar de outra obra. Ficou pendurado pelo cinto de segurança. Foi resgatado, ileso, pelos companheiros. E se não estivesse usando o cinto?” – questiona.
Histórias que ninguém sabe
Mas, acidentes não ocorrem apenas no ambiente de trabalho. Certa vez, Chicão deu pela ausência de um colaborador, que faltou durante dias seguidos. Como a empresa não recebeu nenhuma informação da família, o próprio encarregado resolveu ver o que estava acontecendo. Foi até a casa do funcionário.
A esposa do rapaz informou que ele estava internado, pois sofrera um acidente de moto e tivera várias fraturas. Como não haveria cobertura do seguro, o mestre reuniu os companheiros, narrou o ocorrido e sugeriu que fizessem uma vaquinha, para socorrer a família do rapaz. No dia do pagamento, cada membro da equipe reservou um pouquinho do salário para socorrer o amigo acidentado. Dias depois, o rapaz ligou, chorando, para agradecer.
São coisas que acontecem num canteiro de obras e passam distantes do conhecimento de quem vive lá fora. Ou viverá ali mesmo, daqui a algum tempo.